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Considerações Sobre a Discalculia

Monica C.A. Weinstein

 

De acordo com o código internacional de doenças (CID 10), os transtornos de aprendizagem “(...) são transtornos nos quais os padrões normais de aquisição de habilidades são perturbados desde os estágios iniciais do desenvolvimento. Eles não são simplesmente uma conseqüência de uma falta de oportunidade de aprender nem são decorrentes de qualquer forma de traumatismo ou de doença cerebral adquirida. Ao contrário, pensa-se que os transtornos originam-se de anormalidades no processo cognitivo, que derivam em grande parte de algum tipo de disfunção biológica”. (CID – 10,1992: 236).

 

Dentre os transtornos de aprendizagem, existe uma “condição perseverante que afeta a aquisição das habilidades matemáticas” que tem sido denominada discalculia (Department for Education and Skills, 2002, Chinn, 2007)

 

A natureza dos transtornos de habilidade matemática é bastante heterogênea, como já previra Kosc em 1974. A literatura especializada ainda está em busca de um melhor entendimento da discalculia, mas foram realizados grandes avanços nos últimos anos, particularmente graças a pesquisas de Shalev, 2003; Dehaene, 2004; Butterworth ,2005; Chinn,2007; entre outros. A prevalência da discalculia de acordo com a literatura varia entre 3 e 11% e, naturalmente, depende da amostra selecionada mas, usualmente, é tida como 5%.

 

A partir de pesquisas envolvendo a aquisição do conceito de numerosidade em seres humanos e animais, Dehaene (1997) propôs que o desenvolvimento de um “senso numérico” ou de uma habilidade simbólica para números é muito precoce nos seres humanos. Há, inclusive, evidências de atividade elétrica cerebral em lactentes de 3 meses, em reação à mudança do número e da identidade dos objetos (Izard; Dehaene-Lambertz; Dehaene S., 2008).Uma disfunção nesta habilidade ou senso numérico seria o cerne da discalculia. Esse transtorno específico tem sido denominado “discalculia do desenvolvimento”.

 

A discalculia do desenvolvimento parece ser um problema específico para o entendimento e acesso rápido a conceitos e fatos numéricos básicos (Butterworth, 2005) ou nas palavras de Dehaene (1997) “fundamentalmente uma dificuldade com o construto do senso numérico”.

 

Assim como na dislexia, a discalculia de desenvolvimento só pode ser suspeitada na presença de coeficiente intelectual (QI) normal, na ausência de lesões neurológicas e na presença de exposição a ensino formal da matemática.

 

As dificuldades comummente encontradas na discalculia estão descritas abaixo:

  • Processar auditivamente, entender e escrever números.

  • Perceber velocidade, temperatura e tempo.

  • Compreender como os números se relacionam uns com os outros.

  • Dificuldades ao nível da memória de trabalho e em lidar com várias informações ao mesmo tempo.

  • Lentidão da velocidade de trabalho.

 

Além do funcionamento cerebral e da genética, o mau ensino, o currículo pobre e a ansiedade matemática generalizada podem contribuir para o quadro da discalculia, mas não são a causa da discalculia do desenvolvimento (Shalev, 2003).

 

É importante ressaltar que mesmo na presença dessas dificuldades, os indivíduos portadores de discalculia do desenvolvimento tem inteligência dentro ou acima da média (Dehaene, 2004) e várias potencialidades, tais como:

  • adquirir da linguagem verbal.

  • escrever de poesia.

  • lembrar palavras impressas.

  • lidar com áreas das ciências que não envolvam matemática.

  • entender conceitos numéricos que não envolvam números e modelos computacionais.

  • entender figuras geométricas.

  • artes criativas.

 

Para um entendimento mais aprofundado da natureza da discalculia, do seu diagnóstico e intervenção, é necessário que possamos refletir sobre questões tais como: o que são habilidades matemáticas, quais as bases neurobiológicas da aprendizagem da matemática, como diagnosticar precocemente e qual a melhor forma de intervenção.

 

Em termos acadêmicos, um aluno com discalculia poderá apresentar:

  • Dificuldade para entender conceitos numéricos simples (tais como o local/valor e o uso das quatro operações),

  • Falta de conhecimento intuitivo sobre números (valor e relação entre os números)

  • Problemas para aprender, evocar e/ou usar factos e procedimentos numéricos (ex.: tabuada, divisões longas).

  • Mesmo que estes alunos produzam uma resposta correta ou usem um método correto, eles geralmente o fazem de maneira mecânica e sem confiança.

 

A construção do conhecimento matemático pressupõe que se tenha domínio prévio do conteúdo, ou seja, é um processo essencialmente seqüencial e de formação de padrões, em outras palavras, é um processo de metalinguagem.

 

Por esse motivo, as dificuldades presentes na discalculia persistem mesmo quando há domínio do procedimental pois são problemas no entendimento conceitual e na aplicação do conhecimento do procedimento em novas situações-problema. Quando as dificuldades apresentadas na matemática são apenas de natureza procedimental considera-se que são resultantes de um aprendizado insuficiente da matemática e não de um transtorno de aprendizagem, como a discalculia.

 

Do ponto de vista do neurodesenvolvimento, a literatura (Kosc, 1974, 1986), revela que a discalculia do desenvolvimento reflete uma desordem estrutural (de origem genética ou congênita) das partes do cérebro que são o substrato anátomo-fisiológico da maturação das habilidades matemáticas, sem um transtorno simultâneo das funções mentais gerais.

 

O lobo parietal exerce papel dominante no processamento numérico (especialmente o sulco intraparietal em ambos os hemisférios) e há evidências (exames de imagem) de um recrutamento insuficiente de neurônios no processamento de magnitudes análogas de números nessas regiões (Fias et al. 2003; Dehaene, 2007).

 

A discalculia é uma condição permanente, portanto, o aluno e sua família necessitam de apoio e orientação. Pesquisas indicam que alunos com transtornos de aprendizagem têm mais sucesso no ensino superior quando desenvolveram sólidas habilidades de expressar suas vontades e idéias.

 

Dentre as habilidades de auto-conhecimento importantes de serem estimuladas nos alunos com transtornos de aprendizagem, poderíamos citar:

  • Conhecimento da sua forma de aprendizagem,

  • Habilidade de articular suas necessidades de aprendizagem,

  • Habilidade para comunicar essas necessidades aos outros.

 

Preferencialmente, o diagnóstico da discalculia deve ser realizado em equipe multiprofissional, envolvendo avaliações nas áreas da neuropediatria, neuropsicologia, fonoaudiologia e psicopedagogia. Quando necessárias, avaliações adicionais são solicitadas (oftalmologia, psiquiatria, entre outros).

 

Recomenda-se que as habilidades matemáticas sejam avaliadas de diferentes formas:

  • Oralmente e por escrito.

  • Com e sem papel de apoio.

  • Com objetos concretos.

  • Apresentação do problema e, em caso de dificuldade e ou erro, apresentação da conta.

  • Apresentação de problemas: oral e escrito, com e sem papel, com as contas, só as operações envolvidas (procedimento), alternativas (pesquisar estimativa).

 

No Núcleo Especializado em Aprendizagem da Faculdade de Medicina da Fundação do ABC, localizado na grande São Paulo, Brasil, tem sido desenvolvido um trabalho de diagnóstico multidisciplinar dos transtornos de aprendizagem. Com base na literatura (Butterworth, B & Yeo, D.,2004; Shalev, 2004; Chinn & Ashcroft, 2007) um grupo de profissionais desse núcleo selecionou algumas tarefas para avaliar habilidades matemáticas em crianças com idade superior a oito anos ( Andrade Weinstein et al., 2008) :

 

Tarefas para avaliação de habilidades matemáticas de “senso numérico”

Essas tarefas ainda estão sendo aplicadas na população escolar (7 a 14 anos) sem queixa para estabelecermos um parâmetro de normalidade.

 

A análise da avaliação multiprofissional, tendo em vista o diagnóstico da discalculia, deveria poder responder às questões que se seguem:

  • A criança/adolescente possui senso numérico?

  • Possui domínio semântico?

  • Possui domínio do procedimento?

  • Nível de atenção?

  • Possui ansiedade em relação à matemática?

  • Possui a informação necessária (escolaridade)?

  • Que outros sinais e ou sintomas estão presentes?

 

Convém ressaltar que a discalculia não é uma condição exclusiva e há muitos relatos na literatura de comorbidades tais como a dislexia e o transtorno do deficit de atenção e hiperatividade (TDAH).

 

O diagnóstico precoce aumenta as hipóteses de sucesso na intervenção e minimiza os efeitos deletérios dos transtornos de aprendizagem na criança e em seus familiares. As dificuldades específicas de cada indivíduo devem ser mapeadas e torna-se necessário o planejamento de um ensino eficiente e direcionado às dificuldades específicas, um professor dedicado e uma família acolhedora.

 

Diversos programas de computador e jogos adaptativos para desenvolver habilidades matemáticas já foram desenvolvidos e podem ser utilizados em casa e em situação terapêutica. Não há dúvida de que, nos próximos anos, as pesquisas na área da discalculia aprofundarão nosso conhecimentos nos níveis cognitivo, anatômico e genético. A esse entendimento somar-se-ão técnicas e estratégias de abordagem mais eficientes.

 

Referências Bibliográficas

Andrade Weinstein, M.C; Gabanini,A; Gerbelli, S.M; Brito, I.P.; Wajnsztejn,R (2008). Rumo a um protocolo para avaliação da discalculia. Anais do XIX Congresso Nacional de Fonoaudiologia, Campos de Jordão.

 

Butterworth, B & Yeo, D. (2004) Dyscalculia Guidance. London : Nelson.

 

Butterworth, B. (2005). The development of arithmetical abilities. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 46(1), 3-18.

 

Chinn, S; Ashcroft, R.(2007). Mathematics for Dyslexics including Dyscalculia. 3rd edition, London, Wiley.

 

Dehaene, S. (1997). The number sense: how the mind creates mathematics. London, Oxford university Press.

 

Dehaene,S; Spelke,E.; Pinel, P; Tsivkin,S (1999). Sources of mathematical thinking : behavioural and brainimaging evidence. Science, vol. 284. no. 5416, pp. 970 – 974

 

Department for Education and Skills (2002). Transforming Youth Work - resourcing excellent youth services. London: Department for Education and Skills/Connexions.

 

Geary, D. C. (1993). Mathematical disabilities: Cognitive, neuropsychological, and genetic components. Psychological Bulletin, 114, 345-362.

 

Izard,V.; Dehaene-Lambertz, G. and Dehaene,S. (2008)Distinct cerebral pathways for object identity and number in human infants. PLoS Biology, 6(2):e11.

 

Kosc, L. (1974). Developmental dyscalculia. Journal of Learning Disabilities, 7, 164-177.

 

Organização Mundial da Saúde (1993). CID 10 Classificação Internacional de Doenças e Problemas relacionados à saúde.

 

Wilson, A. J. & Dehaene, S. (2007). Number sense and developmental dyscalculia. Coch, D., Fischer, K, & Dawson, G. (Eds). Human Behavior and the Developing Brain (2nd Edn).

 

 

Monica C. A. Weinstein é fonoaudióloga, Mestre e Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Universidade Federal de São Paulo, Ex-Professora Adjunto do Curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Ciências Médicas de São Paulo, actual coordenadora técnica no Núcleo Especializado em Aprendizagem da Faculdade de Medicina do ABC onde integra e coordena equipe de investigação multidisciplinar dos transtornos de aprendizagem.

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